29 de jan. de 2013

Para Reflexão

Tomo a liberdade de reproduzir as brilhantes palavaras de Néviton Guedes.


NÃO SE IMPEDE A MORTE DESPREZANDO O DIREITO À VIDA


por Néviton Guedes


Desembargador Federal do TRF da 1ª Região e Doutor em Direito pela Universidade de Coimbra.


O tema do artigo de hoje é uma pequena homenagem, com máximo respeito e com a gravidade que o momento exige, às vítimas que morreram de forma tão banal em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, uma região e um estado em que morei e aprendi a respeitar.



Sobre o futuro da natureza humana


Tempos difíceis enfrenta o direito à vida. De fato, anda bem desprestigiado no mundo contemporâneo e, mais ainda, no Brasil.


Quando Jürgen Habermas, no seu livro "O futuro da natureza humana", considerou importante opinar sobre o debate filosófico em torno do manuseio da pesquisa e da engenharia genética e sobre o "status" moral da vida pré-humana, confesso que mesmo eu achei algo exagerada a sua preocupação com a possibilidade de que as gerações futuras pudessem censurar seus pais por preferir beneficiá-las com melhorias genéticas ao invés de respeitarem filigranas morais.


Ora, pensava eu, como alguém no futuro poderá preferir que seus pais tivessem optado, por assim dizer, por eventuais "defeitos humanos genéticos" em lugar da "perfeição genética da tecnologia"? Quem, com efeito, preferiria nascer com problemas genéticos ou de saúde, se a pesquisa genética lhe propiciasse "a perfeição"? Ou dizendo de um jeito mais palatável: quem, perguntava eu, censuraria um pai por preferir que os seus filhos pudessem usufluir ao máximo das melhorias que a ciência lhes pudesse oferecer?


Supreedentemente, contudo, era essa a perspectiva do grande pensador alemão - assumir que, no plano da eticidade, nem tudo que a ciência e a tecnologia nos oferecem é justo e correto aceitar. Em referência ao pequeno grande livro de Habermas, lembra Murilo Mariano Vilaça, "A seleção artificial do ser humano é completamente descartada (...), pois afrontaria, entre outras coisas, a 'autocompreensão ética da espécie, a autonomia e a autenticidade' dos humanos, o que comprometeria a sua dignidade" [1].


Pois bem! Nem bem digerira a rara discordância com o grande filósofo de nossos tempos, e a realidade me reconduzia humilde ao meu lugar, trazendo à lembrança a conhecida advertência do velho Hegel nos seus "Fundamentos de Filosofia do Direito": a coruja do saber só levanta vôo ao entardecer, ou, na sua forma original e mais poética: "A coruja de Minerva inicia o seu vôo apenas quando cai o crepúsculo." E para simplificar, em termos absolutamente mundanos: filosofia não é coisa para iniciantes.


Foi divulgado, neste final de semana, no Brasil e em Portugal (clique aqui para ler), o voto dissidente de um magistrado português, que, suportado em bons fundamentos, entendeu legítimo afirmar o direito à "não-existência". Cuidava de justificar o suposto direito de um recém-nascido a receber reparação pecuniária por danos morais em razão de - podem acreditar - "ter nascido". O laboratório requerido, que não identificara algumas "deficiências" genéticas da criança, deveria indenizar, além da mãe (que já fora indenizada), a própria criança "por ter nascido", já que o seu erro de prognóstico, em não identificar as mazelas congênitas de que padeceria, impediu a mãe de interromper - "em benefício da criança" - a gravidez.


Em outras palavras, o insigne magistrado, mais de dois mil anos depois, parece dar razão, pelo menos em alguma medida, aos espartanos, que arremessavam ao precipício as crianças "não dignas de viver", ou seja, as crianças que nascessem com defeitos congênitos.


Insisto, em homenagem ao magistrado, que o caso era mesmo trágico. De fato, segundo a ConJur, cuidava-se no acórdão do "caso de um bebê que nasceu sem braços e com várias outras deformações, que o impedem para sempre de ter uma vida independente e normal". Lembro também que a mãe já fora indenizada pelo erro do laboratório. Portanto, no caso, cuidava-se estritamente de "danos não patrimoniais" à criança pelo fato mesmo de ter nascido.


Segundo o respeitado magistrado, "não é possível deixar para o tempo da capacidade do filho um direito que só existe enquanto o filho é ainda feto. Alguém tem que ter a capacidade do exercício do direito no tempo em que o direito pode ser vivido". Mas a pergunta, absolutamente constrangedora em termos morais, é a seguinte: será mesmo que aquela criança, já agora com "o tempo da capacidade", podendo, portanto, decidir conscientemente, entenderá que preferiria não ter nascido? Para que ninguém me exija uma resposta, defendo-me com Weber, para quem a ciência não era nem para os profetas nem para os adivinhos.



Sobre o conteúdo do direito à vida




Se devemos - como não-profetas - calar sobre o futuro, podemos falar sobre o passado. Pelo menos em termos jurídicos, o sentimento é de que o direito à vida já teve dias melhores. Certamente disputava o seu espaço com um número menor de bens que a sociedade e a Constituição entendiam merecer proteção. Aliás, já Thomas Hobbes, além de um conjunto de jusnaturalistas, considerava a proteção da vida um dos fins essenciais do Estado [2]. Hoje, apesar de ser sempre referido, de teoria acadêmica a sermão de nossos religiosos, na prática, ninguém lhe dá a mesma importância de outros direitos fundamentais, como é o caso do direito à liberdade, ou do direito à igualdade ou da dignidade da pessoa humana, para ficar nos exemplos conhecidos.


E não obstante o desprezo diante dos outros direitos, como lembra meu querido amigo e admirado professor Ingo Sarlet [3], a vida é, no mínimo, o substrato fisiológico da dignidade da pessoa humana, e toda vida humana - ainda que já extinta ou por nascer - é digna de sua existência e de ser respeitada. De outro lado, não há como falar em liberdade ou igualdade onde não haja vida. De fato, não se pode ser igual nem livre se não se vive. Portanto, só na corrupção mais ingênua de nossos tempos, é que conseguimos submeter a vida humana, sem mais e indistintamente, ao império de outros valores. Infelizmente, ainda que se negue em teoria, é essa a retórica que nós brasileiros preferimos com a prática de nossos atos.


A prova cabal da desimportância do direito à vida é que o Brasil se transformou numa grande carnificina sem que ninguém tenha protestado seriamente. O primeiro significado jurídico do direito à vida é, entretanto, a proibição de matar. Mas aqui mata-se a granel, sem motivo ou por motivo torpe, por incompetência ou por desídia, por ódio e até mesmo, dizem, por amor. Todos os dias assistimos às mais depravadas demonstrações de violência contra a vida humana sem que parta da comunidade (indivíduos, sociedade ou Estado) a mesma indignação que aquela manifestada em casos de violação ao meio ambiente, aos direitos dos animais, à liberdade de expressão, à moralidade administrativa, à liberdade ou à igualdade entre as pessoas.


Todos esses direitos, obviamente, são merecedores da máxima proteção. Mas não deixa de ser irônico que eles encontrem tantos e tão qualificados defensores, enquanto o direito à vida tenha que ser protegido apenas com a retórica de autoridades policiais ou com apelos religiosos.


A tragédia ocorrida em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, que justamente mobilizou mentes e corações, é apenas, contudo, mais uma demonstração das consequências nefastas que o absoluto desrespeito à vida humana provoca em nosso país. Infelizmente, muito embora em forma condensada, arrisco a dizer, contudo, que aquelas duas centenas de jovens mortos pela irresponsabilidade nacional com a vida humana não conseguirão impor um ponto final em nossa mortandade cotidiana. O altar da tragédia em que as vidas desses jovens foram oferecidas em holocausto ao desprezo nacional com a vida é obra de muitos anos e não acaba aqui. Não é tarefa de amadores e exige tempo e persistência.


Além de um desfalecimento moral absoluto dos valores básicos que devem governar qualquer sociedade, a começar pelo mais simples "respeita o teu próximo como a ti mesmo", exige-se para o que aqui presenciamos uma extraordinária determinação e preparo para desvencilhar-se de responsabilidades e obrigações, além de estar disposto e vigilante para, cotidianamente, negar-se a ver as nossas mazelas. Como dizia o velho Machado de Assis, para forjar o caráter da esperteza nacional, do nosso admirado medalhão (o "esperto nacional"), exige-se tanto esforço como perspectiva. Definitivamente, não é tarefa de iniciantes.


Na verdade, se bem observado, aqueles jovens não morreram naquela madrugada. Eles, como milhões de brasileiros, vêm sendo assassinados há muito tempo e continuarão a ser mortos enquanto não tomarmos a sério a vida humana.


Começa por aceitarmos cada um a nossa responsabilidade. A epidemia moral que vivemos não é um problema que se possa curar buscando culpados no "outro", o que invariavelmente, para mantermos a nossa cordialidade, acaba sempre chegando ao Estado, bode expiatório sempre à mão para um sem-número de problemas que só podem nascer e subsistir quando a sociedade como todo e cada um de nós - como indivíduos - consentimos com eles. O Estado tem responsabilidades nisso tudo, é óbvio, mas é um caminho que não começa nem acaba nele. Enquanto não aceitarmos nossa responsabilidade como sociedade e como indivíduos, não vejo por que ter esperanças.


Nós juristas, por exemplo, termos que retomar o bom caminho - aquele em que o Direito existe para servir à vida e ao ser humano, e não o contrário. É de se sentir saudade, por exemplo, de uma época em que os grandes do Direito Penal lembravam, por exemplo, de um Nelson Hungria, a insistir que "todos os direitos partem do direito de viver, pelo que, numa ordem lógica, o primeiro dos bens é o bem da vida".



Notas:


[1] Murilo Mariano Vilaça. O humano entre natureza e seleção. Dilemas éticos no debate Sloterdijk- Habermas, in http://www.fflch.usp.br/df/cefp/Cefp15/vilaca.pdf , acesso em 25.01.2013.


[2] Ingo Wolfgang Salet et al. Curso de Direito Constitucional. SP: Revista dos Tribunais, 2012, p. 349.


[3] Ingo Wolfgang Salet et al. Curso de Direito Constitucional. SP: Revista dos Tribunais, 2012, p. 353.



Fonte: Conjur, 28.01.2013.


28 de jan. de 2013

Tragédia Anunciada

A tragédia da Boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, foi, sem dúvida, exceção aos acidentes que ocorrem em locais de acesso público. Mas a exceção fica restrita a quantidade de pessoas (não "mortos", nem vítimas", como as classificam estatisticamente o Estado e a imprensa).



Quanto a todo o resto, nenhuma exceção: a Boate Kiss cumpriu a regra da irresponsabilidade, válida e vigente em todo o Brasil.



Foram as irregularidades listadas pela imprensa: a) precariedade das instalações que proporcionaram o alastrar das chamas; b) insuficientes saídas de emergência; c) ausência de sinalização das saídas de emergência; d) saídas (principal e de emergência) com difícil acesso; e) não funcionamento dos extintores de incêndio; f) lotação do local para além da capacidade comportada; g) permissão para que uso de sinalizadores pela banda que se apresentava no local (uma observação: sem o devido isolamento da espuma, qualquer curto circuito da fiação causaria o incêndio, portanto, não se pode reputar somente ao "sinalizador" a culpa); e h) despreparo dos seguranças.



Há, ainda, notícia de que o alvará de funcionamento estava vencido, e de que também vencida estava a licença contra incêndios.



A Presidente da República, o Governador do RS, o Prefeito de Santa Maria, RS, e outro monte de aspone's ("assessor de porra nenhuma") solidarizaram-se com os familiares das "vítimas".



O Governador do RS exigiu que até quarta-feira (30.01.2013) se apurem as causas da tragédia. O Prefeito de Santa Maria, RS, afirmou que a fiscalização em casas noturnas é rigorosa.



Agentes do Corpo de Bombeiros apressaram-se em apontar as falhas estruturais e humanas.



A polícia está investigando, e já tomou o depoimento de diversas testemunhas.



E ninguém assumiu a responsabilidade!



O Comandante do Corpo de Bombeiros de Santa Maria, RS, não se entregou para a Polícia, assumindo a responsabilidade pela omissão em fiscalizar o local; por permitir que funcionasse sem isolamento do material inflamável e com extintores que não funcionam.



O Prefeito de Santa Maria, RS, não se entregou para a Polícia, assumindo a responsabilidade pela omissão em fiscalizar o local, e permitir que funcionasse sem a estrutura e o pessoal necessários para oferecer segurança para as pessoas.



O Comandante da Polícia Militar e o Delegado da Polícia Civil, que permitiram o funcionamento do local sem a devida segurança, não se entregaram.



Os engenheiros civil, elétrico e hidráulico que assinaram os projetos certamente ainda não foram presos.



Não é preciso muita imaginação para perceber as razões pelas quais a Boate Kiss funcionava precariamente, sem alvará, sem vistoria do Corpo de Bombeiros, sem respeito às regras de construção civil e sem fiscalização de segurança pela Polícia.



No Brasil da troca de favores, da amizade interesseira, do acerto, da propina, do jeitinho, do financiamento de campanha e da omissão no cumprimento dos deveres e obrigações, já se sabe que nenhuma "autoridade" assumirá a responsabilidade.



A responsabilidade, como em inúmeras outras tragédias brasileiras, cairá exclusivamente sobre os ombros da família e de amigos.



Os proprietários do estabelecimento, caso haja seguro e caso tenham patrimônio ainda não desviado, daqui a muitos e muitos anos indenizarão algumas famílias que resolverem litigar frente o Poder Judiciário.



A lição a tirar do episódio: que familiares e amigos que ocupam algum cargo público ou privado com exercício de autoridade usem-no com honestidade e responsabilidade, pensando nas consequências de suas ações e omissões; que a tragédia não produza somente tristeza, mas que se honre o nome de cada vítima com mudança em nossa própria forma de agir.

25 de jan. de 2013

Desconto (?)

Um excelente texto publicado no blogue do Mansueto Almeida, em 24.01.2013, que tomo a liberdade de reproduzir.



A CONTA DA LUZ!


por Mansueto Almeida



Estava pensando de onde viria o recurso para o governo bancar a redução das tarifas de energia. Antes o custo fiscal seria de R$ 3 bilhões e, agora, esse custo foi elevado para R$ 8,4 bilhões. Excelente, mas de onde vem o dinheiro?


Simples, vem do "Brasil do futuro". Explico. No ano passado o governo quando editou a MP 600, de 28 de dezembro de 2012, colocou lá no Art. 7o o seguinte:


"Art. 7º Fica a União autorizada a ceder onerosamente ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES, e suas controladas, direitos de crédito detidos pelo Tesouro Nacional contra a Itaipu Binacional.


§ 1º O pagamento devido pelo BNDES pela cessão de que trata o caput poderá ser efetivado em títulos da dívida pública mobiliária federal ou ações de sociedades anônimas, exceto as integrantes de instituições pertencentes ao Sistema Financeiro Nacional, respeitada a equivalência econômica da operação, sendo o ajuste de eventual diferença paga em moeda corrente pelo BNDES à União.


§ 2º A operação deverá ser formalizada mediante instrumento contratual a ser firmado pelas partes.


§ 3º Fica a União autorizada a destinar, à Conta de Desenvolvimento Energético - CDE, no todo ou em parte, os recursos financeiros provenientes da cessão onerosa de que trata o caput.


§ 4º Fica a União autorizada a celebrar contratos com o BNDES com a finalidade de excluir os efeitos da variação cambial incidentes nos direitos de crédito de que trata o caput."


O que isso significa exatamente? Significa que o governo tem a autorização legal para vender para o BNDES créditos que tem a receber no futuro da Itaipu. Ou seja, utiliza-se um receita futura para financiar uma despesa corrente - parte da conta de desoneração das tarifas elétricas hoje.


Se isso vale para a desoneração do setor de energia, o que garante que no futuro não se use o mesmo "truque" (transformar receita futura em receita primária corrente) para aumentar outros tipos de despesa?


E para piorar a situação, como o BNDES não tem recurso sobrando e precisou de novos empréstimos do Tesouro no ano passado, na prática, isso significa que o tesouro fez a seguinte sequência de operações:


(1) Emite títulos (aumenta a divida bruta) e repassa o recurso para o BNDES - sem impacto na Div. Liquida do Setor Publico porque a operação gera um débito (aumento da divida bruta) e um crédito (empréstimo ao BNDES);


(2) No período seguinte, o Tesouro pega parte dos recursos que iria receber no futuro de Itaipu e vende hoje para o BNDES, que pode pagar com os mesmos títulos que recebeu do governo, que teve como fonte de origem o aumento da divida bruta;


(3) Resultado final, o governo traz para o presente receita futura e, adicionalmente, aumenta a divida bruta que se transforma em receita primária.


Dois pontos muito rápido. Primeiro, usar receita futura para pagar gastos correntes definitivamente não é algo recomendado. Segundo, o Brasil já tem uma dívida bruta elevada. Pela metodologia do FMI, que leva em conta os títulos públicos na carteira do Banco Central, a divida bruta do Brasil, em 2011, foi de 65% do PIB.


Se usarmos as estatísticas do FMI para fazer comparações internacionais, a dívida bruta do setor público no Brasil não é baixa. Em 2010-2011, essa divida em outros países era de: México (43,8% do PIB), Colômbia (36% do PIB), Equador (18% do PIB), Peru (20,92% do PIB) e Chile (11,25% do PIB).


Uma dívida bruta de 65% do PIB (conceito do FMI) é semelhante ao nível de endividamento de países como Espanha e EUA antes da crise. Em 2007, a dívida bruta dos EUA era de 67,1% do PIB, valor um pouco acima da divida bruta do Brasil, em 2011.


Mas claro que alguns dirão que não é preciso se preocupar com a divida bruta porque o Brasil é um país maior do que os outros da América Latina e tem uma "situação melhor" do que os EUA - aquele país que tem uma renda per capita de US$ 48 mil e uma carga tributária "enorme" de 25% do PIB.

23 de jan. de 2013

O Governo e os Tributos

Não sou um ardoroso fã de Ives Gandra da Silva Martins. Mas o texto abaixo reflete o pensamento do atual governo, quanto à finalidade das empresas privadas. Pena que não pense o mesmo das empresas públicas. Estas são utilizadas como cabide de emprego e fonte de receita para um sem número de desvios.


NAUFRÁGIO TRIBUTÁRIO


Ives Gandra da Silva Martins


Considerar que a função das empresas é gerar receita tributária emperra o país. Dilma deve impor concepção desenvolvimentista à Receita.



Talvez um dos principais fatores do fracasso econômico do governo Dilma Rousseff em seus dois primeiros anos -com alta inflação, baixo PIB, um dos últimos lugares em crescimento na América Latina, pouco investimento, perda de competitividade internacional e crescimento da esclerosada máquina burocrática- seja o confuso, arcaico e oneroso sistema tributário.



Mediante ciclópicos autos de infração, a produção de complexas normas auxilia a fragilizar as empresas.



Militando há 55 anos na área fiscal e tendo convivido com os pais do Direito Tributário brasileiro, à época em que as leis eram feitas por juristas e não por "regulamenteiros", tenho acompanhado a deterioração do sistema.



O cidadão, jamais consultado, vê-se de mais em mais envolvido num emaranhado de leis, portarias, instruções normativas, soluções de consulta. A única certeza que se apresenta é a insegurança jurídica.



Pretende a presidente Dilma atrair investimentos, mas a Receita Federal auxilia a afastá-los, considerando operações suspeitas fusões, incorporações e outras formas de agregação de sociedades. Isso tisna a agilidade competitiva das empresas brasileiras perante aquelas de outros países.



A famosa norma antielisão (LC 104/01), que ainda não foi regulamentada, é, sob disfarces diferentes, amplamente utilizada para inviabilizar tais operações, sob a alegação de que, ao escolher entre duas soluções rigorosamente legais, deve o contribuinte sempre adotar a que se apresentar tributariamente mais onerosa.



Não discuto a idoneidade dos agentes fiscais, mas, sim, a errônea filosofia de que a função da empresa é gerar receita tributária e não provocar o desenvolvimento econômico e social do país. Essa filosofia está emperrando, definitivamente, o governo da presidente Dilma, não só com medíocre performance econômica, mas também com a desestabilização do terceiro setor -que faz o que o governo deveria fazer com nossos tributos-, sendo perseguido pelo poder público como se fosse fonte de receita tributária e não de assistência social e educação.



Participei da comissão de especialistas nomeada pelo Senado para propor uma reformulação do pacto federativo e do sistema tributário. Éramos 13 e, após seis meses de intensos trabalhos, apresentamos 12 propostas de emendas constitucionais, leis complementares, resoluções do Senado e leis ordinárias. Entregues em 30/10/2012 ao presidente do Senado, elas continham soluções para o equacionamento da guerra fiscal, novos critérios para os fundos de participação dos Estados e municípios, para os royalties do petróleo e para a reformulação da partilha tributária.



Apenas no que concerne à guerra fiscal, o governo federal aproveitou as sugestões.



Como o mandato não foi renovado, não pudemos continuar o trabalho para uma reforma tributária completa. Enquanto isso, o país naufraga num sistema que o próprio governo reconhece de há muito ultrapassado.



Na década de 60, no Canadá, a "Royal Comission of Taxation" se voltou a promover justiça social e desenvolvimento por meio de uma política tributária correta, que privilegia esses objetivos em lugar da mera arrecadação. Seu incremento decorre, necessariamente, do atingimento de ambos.



Creio que, se a presidente Dilma não impuser uma filosofia desenvolvimentista à Receita Federal, baseada no modelo canadense, dificilmente sairemos dos últimos lugares de desenvolvimento e seu governo continuará a ostentar um dos piores índices da América Latina, com baixo crescimento e alta inflação.



Ives Gandra da Silva Martins, 77, advogado, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra.


Fonte: Folha de São Paulo, 23 de janeiro de 2013.

22 de jan. de 2013

UM CIDADÃO ACIMA DE QUALQUER SUSPEITA

Por Marco Antonio Villa


Luís Inácio Lula da Silva se considera um cidadão acima de qualquer suspeita. Mais ainda: acha que paira sobre as leis e a Constituição. Presume que pode fazer qualquer ato, sem ter que responder por suas consequências. Simula ignorar as graves acusações que pesam sobre sua longa passagem pela Presidência da República. Não gosta de perguntas que considera incômodas. Conhecedor da política brasileira, sabe que os limites do poder são muito elásticos. E espera que logo tudo caia no esquecimento.



Como um moderno Pedro Malasartes vai se desviando dos escândalos. Finge ser vítima dos seus opositores e, como um sujeito safo, nas sábias palavras do ministro Marco Aurélio, ignora as gravíssimas acusações de corrupção que pesam sobre o seu governo e que teriam contado, algumas delas, com seu envolvimento direto. Exigindo impunidade para seus atos, o ex-presidente ainda ameaça aqueles que apontam seus desvios éticos e as improbidades administrativas. Não faltam acólitos para secundá-lo. Afinal, a burra governamental parece infinita e sem qualquer controle.



Indiferente às turbulências, como numa comédia pastelão, Lula continua representando o papel de guia genial dos povos. Recentemente, teve a desfaçatez de ditar publicamente ordens ao prefeito paulistano Fernando Haddad, que considerou a humilhação, por incrível que pareça, uma homenagem.



Contudo, um espectro passou a rondar os dias e noites de Luís Inácio Lula da Silva, o espectro da justiça. Quem confundiu impunidade com licença eterna para cometer atos ilícitos, está, agora, numa sinuca de bico. O vazamento do depoimento de Marcos Valério - sentenciado no processo do mensalão a 40 anos de prisão - e as denúncias que pesam sobre a ex-chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo, Rosemary Noronha, deixam Lula contra a parede. O figurino de presidente que nada sabe, o Forrest Gump tupiniquim, está desgastado.



No processo do mensalão Lula representou o papel do traído, que desconhecia tratativas realizadas inclusive no Palácio do Planalto - o relator Joaquim Barbosa chamou de "reuniões clandestinas" -; do mesmo modo, nada viu de estranho quando, em 2002, o então Partido Liberal foi comprado por 10 milhões, em uma reunião que contou com sua presença. Não percebeu a relação entre o favorecimento na concessão para efetuar operações de crédito consignado ao BMG, a posterior venda da carteira para a Caixa Econômica Federal e o lucro milionário obtido pelo banco. Também pressionou de todas as formas, para que, em abril de 2006, não constasse do relatório final da CPMI dos Correios, as nebulosas relações do seu filho, Fábio Luís da Silva, conhecido como Lulinha, e uma empresa de telefonia.



No ano passado, ameaçou o ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes. Fez chantagem. Foi repelido. Temia o resultado do julgamento do mensalão, pois sabia de tudo. Tinha sido, não custa lembrar, o grande favorecido pelo esquema de assalto ao poder, verdadeira tentativa de golpe de Estado. A resposta dos ministros do STF foi efetuar um julgamento limpo, transparente, e a condenação do núcleo político do esquema do mensalão, inclusive do chefe da quadrilha - denominação dada pelo procurador-geral da República Roberto Gurgel - sentenciado também por corrupção ativa, o ex-ministro (e todo poderoso) José Dirceu, a 10 anos e 10 meses de prisão. Para meio entendedor, meia palavra basta.



As últimas denúncias reforçam seu desprezo pelo respeito as leis. Uma delas demonstra como sempre agiu. Nomeou Rosemary Noronha para um cargo de responsabilidade. Como é sabido, não havia nenhum interesse público na designação. Segundo revelações divulgadas na imprensa, desde 1993 tinham um "relacionamento íntimo" (para os simples mortais a denominação é bem distinta). Levou-a a mais de duas dúzias de viagens internacionais - algumas vezes de forma clandestina -, sem que ela tenha tido qualquer atribuição administrativa. Nem vale a pena revelar os detalhes sórdidos descritos por aqueles que acompanharam estas viagens. Tudo foi pago pelo contribuinte. E a decoração stalinista do escritório da presidência em São Paulo? Também foi efetuada com recursos públicos. E, principalmente, as ações criminosas dos nomeados por Lula - para agradar Rosemary - que produziram prejuízos ao Erário, além de outros danos? Ele não é o principal responsável? Afinal, ao menos, não perguntou as razões para tais nomeações?



Se isto é motivo de júbilo, ele pode se orgulhar de ter sido o primeiro presidente que, sem nenhum pudor, misturou assuntos pessoais com os negócios de Estado em escala nunca vista no Brasil. E o mais grave é que ele está ofendido com as revelações (parte delas, registre-se: e os 120 telefonemas trocados entre ele e Rosemary?). Lula sequer veio a público para apresentar alguma justificativa. Como se nós, os cidadãos que pagamos com os impostos todas as mazelas realizadas pelo ex-presidente, fossemos uns intrusos e ingratos, por estarmos "invadindo a sua vida pessoal."



Hoje, são abundantes os indícios que ligam Lula a um conjunto de escândalos. O que está faltando é o passo inicial que tem de ser dado pelo Ministério Público Federal: a investigação das denúncias, cumprindo sua atribuição constitucional. Ex-presidente, é bom que se registre, não tem prerrogativa de estar acima da lei. Em um Estado Democrático de Direito ninguém tem este privilégio, obviamente. Portanto, a palavra agora está com o Ministério Público Federal.



Marco Antonio Villa é historiador e professor da Universidade Federal de São Carlos.